UM VÍRUS PARA VIVER.
26 de MARÇO de 2020
Envolvidos por um sistema imediatista, construído em cima de sacrifícios, agimos sem fôlego, como máquinas obrigadas a produzir e reproduzir em função do desenfreado consumo. Um sistema que não nos permite gozar do tempo e tampouco nos deixa pensar e questionar seus discursos de heróis e robôs. Enredados nesta engrenagem, nos falta tempo para conhecer nossa verdadeira essência e compreendê-la melhor.
Lembrando o filósofo Blaise Pascal:
“Estamos sempre dispostos a negar o que não compreendemos”.
De repente, um vírus, um desconhecido, nos damos conta que “é preciso cuidar da vida”. Esta situação vem nos ensinar muitas coisas e, entre elas, a certeza da impotência. Somos todos vulneráveis! Ameaçados por um ser invisível, nos vemos obrigados a parar e, no ócio do confinamento e da distância, começamos a considerar o outro; face à ameaça real da morte, não há diferença de classe social, raça ou gênero. Há sim os que teimam manter o sistema. Para eles, é preciso salvar a economia, apesar das contaminações e infecções. Estamos no mesmo barco, mas neste naufrágio, contemplamos salvar as pessoas, não o mar.
De repente, descobrimos que o nosso “gostar” não se encaixa aos ganhos, salários, lucros, posses e às pessoas que, de acordo com os próprios interesses, podem nos proporcionar algo. Aprendemos a não perder tempo fazendo coisas que não gostamos por pagamentos que nunca nos satisfazem. O trabalho é o dom de criar e não instrumento de opressão em favor do acumulo. José Saramago alertava que “ter é a pior maneira de gostar”.
De repente, reaprendemos a “gostar”, não como obrigação, mas por liberdade. O conselho de Rubem Alves nos motiva: “Aprenda a gostar, mas gostar mesmo, das coisas que deve fazer e das pessoas que o cercam. Em pouco tempo descobrirá que a vida é muito boa e que você é uma pessoa querida por todos”.
Forçados a "parar", descortinamos o tempo e, em nossas casas, erigimos um templo. Templo de trabalho, porque enquanto vivemos é preciso criar e recriar, pois “a vida só é possível reinventada”, dizia Cecilia Meireles. Templo de meditação e oração, porque descobrimos que igreja cheia não é sinal de solidariedade e compaixão. Templo de jejum, porque aprendemos que não é no mercado que encontramos o alimento que verdadeiramente satisfaz a alma. Fazemos da cozinha o lugar da comunhão; do quarto, o lugar da doação; da sala, sob o som da música e de uma taça de vinho, o lugar do perdão e da festa. Aprendemos que ser vulnerável nos faz mais humanos, menos deuses, e isso nos liberta.
Concordo com o escritor Fernando Sabino:
“É preciso fazer da interrupção um novo caminho, a tratar a queda como um passo de dança e a lidar com o medo como se subisse uma escada”.
imagem: acervo wix
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