POR UMA ÉTICA DO PODER.
20 de FEVEREIRO de 2020
Contesto e recuso a forma de poder que persegue, achata a classe trabalhadora, incentiva o etnocídio e o ecocídio em favor de interesses espúrios, zomba dos mais pobres motivando a desigualdade e se ergue sobre mentiras utilizando-se de Deus para se justificar. Esta forma de lidar me faz desacreditar e ver o poder com indiferença ou como algo que nada acrescenta à humanidade. Sua frieza, longe de trazer esperança, provoca medo e desconfiança.
Sou tentado a concordar com o filósofo Bertrand Russel ao dizer: “se a nós fosse dado o poder de entrar no pensamento das pessoas, a amizade seria a primeira coisa a desaparecer”.
Em outras palavras, sou tentado a pensar que o poder em si corrompe e nos traz desgraças. Por outro lado, penso que o problema é a forma de lidar com ele. A busca pelo poder é natural ao ser humano. Todos nós o almejamos, ainda que insignificante. Clarice Lispector desejava dominar o mundo e não via outra saída a não ser pela palavra. De uma forma ou de outra, somos provocados pelo poder. Como lidar com ele? Há uma ética cristã que nos ajude a abordar esta realidade e nos conduza a uma vida digna de justiça e amor?
Não vou usar Deus com o intuito de persuadir ninguém, mas quero ser iluminado pela Palavra a fim de melhor lidar com o poder, seja ele o exterior ou aquele que nasce do próprio desejo.
Leio o texto de São Marcos (10,42-43):
“Sabeis que aqueles que governam as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim”.
Jesus não diz que o poder é desnecessário, pelo contrário, ensina aos discípulos a lidar com própria prepotência. O poder em si não é mal ou corrupto. Numa passagem anterior, o evangelista expressa a posição do Mestre: O que corrompe e contamina é maldade humana (Mc 7,20-23). Nesta orientação, escreveu Rubem Alves: “o crime não começa com o dedo que puxa o gatilho. Ele começa naquele que fabrica armas”.
Os ensinamentos de Jesus concordam com a tradição dos sábios e profetas. O autor de Provérbios escrevera sobre a cura interior: sabedoria em relação a Deus e ao mundo: “Não sejas sábio a teus próprios olhos; teme ao Senhor e aparta-te do mal. Isso será remédio para o teu umbigo e medula para os teus ossos” (Pr 3,7-8). Os profetas, na mesma direção, advertiam ao povo de Israel. Zacarias, diante daqueles que mentiam e explorava os desfavorecidos da sociedade, denunciava: “executai juízo verdadeiro, mostrai piedade e misericórdia cada um a seu irmão; e não oprimais a viúva, nem o órfão, nem o estrangeiro, nem o pobre, nem intente o mal cada um contra o seu irmão, no seu coração” (Zc 7,9-10).
Jesus não condena os poderes, mas os salva deles mesmos, resgatando sua dimensão teológica: O poder vem de Deus! Ele estabelece uma nova ética, uma atitude diferente frente às alianças dos políticos e religiosos da época. Diante de Pilatos mostrou o que a verdade deve estar sempre em referência a Deus e não aos próprios interesses. Jesus revela uma nova maneira de viver e a cruz será o trono deste novo poder. É preciso negar-se a si mesmo para segui-lo (Mc 8,34-35). Herodianos e fariseus armavam armadilhas para pegá-lo. Certo dia perguntaram ao Mestre se era lícito dar o tributo a César. Jesus pegou a moeda e referindo-se à imagem impressa nela disse: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12,13-17). Ele não condenou o poder de César, mas indicou o caminho do reino ao qual servia.
A função do poder é servir e Jesus o revela na própria vida, na total obediência a Deus. Ele “não veio para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45b). Voltando às perguntas iniciais, respondo: não é fácil lidar com o poder real ou imaginário. A tendência é sempre condená-lo sem considerar aquele que o exerce e com qual intenção o faz. Esta reflexão nos ajuda a ver que o verdadeiro poder está em controlar a si mesmo e não no exercício da prepotência e do desmando, próprio da noção banalizada de poder. Para uma nova ética do poder, cabe lembrar sempre as palavras de São Paulo aos Romanos: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com bem” (Rm 12, 21).
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