CARNAVAL: a festa dos sonhos
Atualizado: 9 de mar. de 2020
29 de FEVEREIRO de 2020
Clarice Lispector
“Houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado”.
Sim! Houve um carnaval diferente dos outros. Não um carnaval pintado por uma elite, moralista e conservadora, que se resume em folia e pecado, mas um carnaval de sonhos cujo encanto está em estender a corda do simbólico sobre o abismo do real que perturba e faz sofrer. O inesquecível bispo de Olinda, Dom Helder Câmara, dizia: Há pecados no carnaval, como há pecados na quaresma. Há excessos cometidos por foliões, assim como há o farisaísmo dos que se julgam santos, melhores que os outros, por não brincarem o carnaval.
Carnaval é tempo de festa! A Marquês do Sapucaí representa a alegria de todas as pessoas que por este Brasil se encantam com a chamada “festa da carne”. Só um espírito bom pode valorizar o corpo e sua vontade de dançar. Nietzsche se dizia ateu. Não podia acreditar num deus que não dança.
Este ano, além de sorrisos desprovidos de medo, vi olhares reflexivos e esperançosos. Eu diria, para aqueles que se retiraram em oração pelos pecadores, que algumas avenidas foram verdadeiros templos: mostraram a carne de Jesus: marginalizada, vítima de preconceitos, desempregada e vulnerável. Um jesus que clama por igualdade e justiça social.
Houve um carnaval diferente dos outros e que, como Rubem Alves, nos fez pensar:
“A política, dentre todas as vocações, é a mais nobre e, dentre todas as profissões, é a mais vil”.
A beleza do enredo e das alegorias se aliou ao sentimento de que “a verdade nos faz livre”. Estética e ética deram-se as mãos. Excelentes aulas de história, política e religião. A Estação Primeira de Mangueira emocionou ao questionar as representações e uso da imagem de Cristo em favor do poder. Verdadeira aula de espiritualidade. A São Clemente abafou com o seu humor crítico à política atual do governo e a Vila Isabel emplacou denunciando a falta de cuidado com a natureza, os animais e os nativos. Outras escolas desmascararam o machismo, racismo e outras formas de preconceitos. Em São Paulo e Rio de Janeiro, a maioria das escolas abordaram temas que nos remetem ao comprometimento político e consciente face à tristeza e ao caos que atualmente a realidade nos apresenta. Nos motivaram a pensar uma nova sociedade onde é preciso por “um pouco de sonho na realidade dura da vida”, como bem dizia dom Helder.
Em São Paulo a escola Águia de Ouro foi esplêndida homenageando Paulo Freire, patrono da educação brasileira. Num momento em que o nosso “governo” ignora o saber, persegue professores e desmonta a educação gratuita e libertadora, a escola grita: “Viva Paulo Freire!” Pois é, aquele que o Jair chamou de “energúmeno” sem conhecer a sua maravilhosa obra: “Pedagogia do oprimido”. O apelo da escola faz pensar: educar para a consciência e não para o analfabetismo político e funcional. Emocionou com o refrão da música de Geraldo Vandré, perseguido e torturado pela Ditadura: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
No Rio de Janeiro, no Sambódromo, a escola Unidos do Viradouro apresentou a história, a cultura dos cantos, as danças e a religiosidade das lavadeiras baianas na figura de Maria de Xingó. Uma reação ao machismo e ao racismo incentivado e cultivado por cultura da morte que desqualifica a mulher e ironiza a negritude. Revela a voz de muitas mulheres brasileiras que se sacrificam para o sustento de sua família: “Ó mãe, ensaboa mãe, ensaboa, pra depois quarar”.
Houve um carnaval diferente dos outros com reflexão e reação. Fomos surpreendidos com a notícia da convocação do governo Bolsonaro às ruas para o dia 15 de março. Devido às críticas e à baixa popularidade, ele pede aos bolsonaristas que saiam às ruas a seu favor, contra as oposições e o Congresso Nacional. Por que esta data? Lembra não só a manifestação popular pelo Impeachment de Dilma, mas também o dia da posse dos presidentes militares. O hóspede do planalto tem se revelado devoto do autoritarismo e da Ditadura Militar.
O carnaval pode ter pecados, mas não é pecado! Ele combina com política, trabalho, prazer, conhecimento, comércio, saber e religião. Nas palavras, atribuídas a Gandhi, pecado é uma “política sem princípios, riqueza sem trabalho, prazer sem consciência, conhecimento sem caráter, comércio sem moralidade, ciência sem humanidade e culto sem sacrifício”.
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